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A memória é um abismo visto de baixo. Uma escarpa sombreando o humano. Somos o que lembramos? Somos aquilo que respiramos entre esquecimentos providenciais? Existimos quando existimos na memória dos outros? A memória é também um grande lago onde se acumulam as coisas acontecidas. Algumas lembranças saltam para o presente, causando um alvoroço na pele, quando se olha para os objetos de alguém que perdemos, um lugar em que estivemos ou uma sensação que sentimos.
A memória é uma traidora quase sempre: é feita de restos, rastos, pessoas mantidas na neblina do passado, que, às vezes, surgem solares, cumprimentam-nos, perguntam-nos banalidades com a alegria espontânea dos que não esquecem. Esquecer e lembrar são verbos sempre presente no presente. Esquecer para caber mais coisas na mente, que serão esquecidas em breve. Aquilo que lembramos foi o que não peneiramos: as grandes rochas da amizade, os ferros graves da dor, uns ossos de solidão e ternura. O que lembramos, via de regra, são aquelas coisas medulares que se aconchegam nos lugares mais recônditos do nosso corpo e do nosso espírito.
Entre os fatos gigantes que estão na memória permanente, ficam também uns fatos mínimos para sempre lembrados. A memória, a história e os documentos de vida são a base do trabalho do Grupo Carmin, que foi criado em 2007, na cidade de Natal (RN). A premissa inicial do grupo era pesquisar e retratar temas urbanos de maneira cômica. Fundando-se nisso, nesses dez anos de existência, o grupo vem desenvolvendo uma série de espetáculos que tocam o clown, o teatro popular, autos de natal e o teatro infantil. A pesquisa enveredou para a questão da exclusão social dos idosos, o que resultou no espetáculo Jacy, que estreou em 2013 e permanece percorrendo o Brasil como um dos maiores êxitos do grupo.
Jacy é um espetáculo que, ao apresentar o recorte de uma vida, de um pequeno universo, se torna todo o mundo. Entrincheirado na fronteira da memória, da ficção e do teatro documental, o trabalho é resultado do acaso. Em processo de criação de um novo espetáculo, o ator e diretor Henrique Fontes encontrou, em uma das principais ruas de Natal, uma maleta em um amontoado de lixo. Ao levar a frasqueira à sala de ensaio, o grupo começou a mergulhar no pequeno universo ali encontrado. Cartas, pequenos objetos e o cartão de um taxista serviram para a construção de um cartografia afetiva e política da cidade de Natal e do Brasil.
Assim, a vida da nonagenária Jacy passou a ocupar a pesquisa do grupo e resultou no espetáculo homônimo. Quitéria Kelly e Henrique Fontes impressionam pelo modo como se apropriaram de uma história aparentemente sem interesse público algum e figuram no palco como se fossem íntimos e tivessem muita proximidade com a existência de Jacy. Com dramaturgia de Pablo Capistrano e Iracema Macedo, chama atenção na montagem o trabalho do cineasta Pedro Fiúza, que é responsável pela dramaturgia visual e tem atuação imprescindível, porque discreta, competente e integrada ao ritmo confessional que permeia a montagem.
Ao restituir ao mundo a trajetória de Jacy, o grupo estabelece relações com o atual momento político e faz uma ponte entre o que éramos e o que somos hoje como corpus social, isto é, um país das grandes empresas e das infindáveis oligarquias; no entanto, o tom político vai surgindo no espetáculo de maneira espontânea sem que haja prejuízo ao mundo sensível de Jacy, que é exposto em atuações que mais parecem comunhão, celebração, porque Quitéria e Henrique exploram o palco como se estivessem em um parque de diversões em período de infância. Há muita leveza e beleza nas atuações. Há muita consciência e clareza nas opções estéticas que o grupo fez. Jacy é um daqueles espetáculos que faz com que voltemos à nossa casa com vontade de mexer nas lembranças, de olhar aquela fotografia esmaecida dos nossos parentes e amigos que não nos acompanham mais. E ao mesmo tempo é um convite para olharmos nosso mundo de frente, com ternura e criticidade.
Não é por acaso que o grupo já detém considerável fortuna crítica sobre Jacy: tem circulado nos principais festivais do Brasil e recebido indicações importantes de premiações. Porque Jacy é um acontecimento teatral completo. É o retrato da beleza fustigando o cerne da lembrança, do abandono social de nossos idosos, mas não apenas deles, pois o encontro com Jacy é o encontro com os nossos abandonos reais a lembrar que a memória é, também, o abismo visto de dentro.
Por Marco Vasques (SC)
Poeta, contista e crítico de teatro. Mestre em teatro pelo programa de pós-graduação da Udesc, com pesquisa em Flávio de Carvalho. É doutorando em teatro pelo mesmo programa. É editor do Caixa de Pont[o] - jornal brasileiro de teatro e do jornal Ô Catarina. Integra a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.